Era Natal e eu estava na casa do meu pai.
Tinha comprado um livro que eu sempre quis ler, “Cartas a um Jovem Poeta” de Rainer Maria Rilke.
Me lembro de ver esse livro em cima de uma cristaleira que ficava no quarto que eu dividia com meu irmão quando éramos crianças. Ou de imaginar esse livro em cima da cristaleira, pois, talvez, se esse livro tivesse realmente existido ali, eu já o teria aberto e lido. E com essa visão agora ecoam as palavras da minha mãe, “Cartas a um Jovem Poeta é meu livro preferido!”, “Cartas a um Jovem Poeta é meu livro preferido!” Mas hesitava em ler esse livro, talvez porque na época achei deprê o filme Sociedade dos Poetas Mortos, ou ela mesma dizia que era deprê o filme, até que eu assisti e concordei, e aí confundia os Poetas e...
Até que aquilo que “sempre quis” foi se aproximando e eu enfim resolvi comprar e ler. Mas é claro (para mim), que, se eu sei a língua, ou quero aprender a língua, tento encontrar o original e aproveitar. Eu amo, AMO ler palavras em outras línguas. Cada palavra que eu vejo me traz conexões com todas as outras palavras que têm o mesmo caminho, que pode ter vindo do português, do inglês, do italiano, pode vir do som ou de alguém que eu conheço e amo e que me dá a vontade de ler. Amo o significado escondido e às vezes só meu das coisas. Então cada palavra que eu reconheço em outra língua é um frio na barriga, um entusiasmo, é uma explosão visual em fogos de artifício que só eu vejo. Realmente, é tudo isso para mim.
Com o alemão também foi assim: começou com o tio Martin, marido da tia Rô, que é alemão. Quando criança, eu achava completamente estranho aquilo. Além da minha mãe, ele era o primeiro elemento externo da família do meu pai. Meus outros tios ainda não namoravam e não eram casados. Então, ele foi o primeiro a vir de fora. Percebi isso agora que estou escrevendo. Na família dele, eram todos atléticos. Jogavam tênis de branco no saibro ao meio-dia. Bronzeados. Da cor do saibro. Loiros. Da cor da roupa. A mãe dele era completamente bela. Falava sempre feliz em me ver, com sotaque, tinha um reloginho no pulso que, não sei porquê, sempre me vem à mente junto com sua pele morena alaranjada e o cabelo curto e loiro platinado. A Nicole, minha amiga, é de ascendência alemã e imita a avó falando, e é igualzinho. Dou muita risada, acho o máximo como alguém pode reparar nas sutilezas que fazem o sotaque, de dizer, por exemplo, camarão com dois erres. E hoje sinto saudades.
Daí fui fazer italiano. Amava minha professora. Não me lembro o nome da escola, era em uma casa. A casa vizinha era uma escola de alemão, Kreativ: a bandeira de três cores na horizontal, no nome. E por que não? Sair da aula (uma hora de aula de italiano) e já emendar em uma hora de aula de alemão. Foi o que fiz. Mas não serviu de nada, parecia. A professora resolveu falar alemão durante a aula toda e só; eu ficava uma hora escutando sem entender absolutamente nada. Talvez o primeiro dia que eu entendi alguma coisa tenha sido quando descobri que eles falam o segundo número antes do primeiro quando passa de 12. Daí ela pedia pra eu fazer lições de casa. Tenho vontade de rir só de lembrar. Fazer o quê de lição de casa, se tudo era absolutamente ininteligível? Toda aula um capítulo. Mas como?, se eu nunca nem cheguei a passar do primeiro? Até que um dia eu li: dusche. DUCHA! Aleluia! Clareou! Comecei a enxergar as palavras. De ducha acho que veio chuva. Regnen. Rain. E por aí foi.
Não funcionaram muito, essas aulas. Mas comecei a enxergar o alemão: se eu distorcesse um pouco o inglês, se eu abstraísse, surgiriam os significados para mim.
Minha amiga Clarissa começou a namorar um alemão. Então, tive a oportunidade, morando na França, de conhecer a vizinha Alemanha. Ia visitar a Clarissa. Me surpreendi e me apaixonei. Voltei a me interessar por alemão. Certa noite fiquei esperando a Clarissa fazer aulas de golf para praticar com o namorado que hoje é marido. Fiquei esperando em um café. Peguei o cardápio e comecei a copiar as palavras. Kartoffeln. Batata. Não sei como faz sentido, mas intuí. Käse foi o máximo. Queijo! Gente, é igual. Estudando na Sorbonne, escolhi em um dos anos o alemão como aula optativa de línguas, e a professora se ofereceu para fazermos Tandem: eu a ensinaria português e ela me ensinaria alemão. Fiquei feliz, orgulhosa e lisonjeada com o convite, mas jamais fizemos.
Depois teve o Duolingo, avancei bastante. Depois escutei um podcast com x aulas de alemão para iniciantes. Adoro essas coisas com quantidade predeterminada. Anotava em um caderninho o que escutava. Depois comecei a escutar os dez minutos de Tagesschau todos os dias. Anotava também em um caderninho a lista de manchetes que eles disponibilizavam. Fiz isso por uns seis meses todos os dias, cada mês um caderninho. Comprei um livro chamado “Short German Stories for Beginners” e lia em voz alta antes de dormir. E aí comecei a ler o livro. É muito legal perceber todo esse caminho que eu fiz até chegar no livro que escutava minha mãe dizendo ser seu preferido. Inclusive, uma vez, passeando pela Itália com a Clarissa e nossa turma esportiva de amigos alemães, perto do Lago di Garda, andei por um caminho onde o Rilke passou. Em uma placa li: Rilkeweg. Rilkeway. Caminho do Rilke. Que incrível isso, que emoção, que testemunho, o quão viva eu me senti. Estar no caminho do poeta que esteve no meu caminho antes.
Rilke Promenade, na verdade. Se promener, promenade, em francês, passeio. Eu, Clarissa e Arthur sentados em um banco em Arco. No topo da montanha que tínhamos acabado de subir de bicicleta e a pé. O cheiro das folhas verdes das árvores. Antes disso, a lavanda que Arthur colheu e me deu. As espirradeiras amanteigadas que brevemente foram minhas árvores preferidas, pois enchiam nosso caminho enquanto andávamos de bicicleta envoltos por elas, rosas, brancas, rosas, até eu as descobrir venenosas. E a vista cinza verde e azul. Até que, no livro, eu li também que ele, o Rilke, também esteve ali.
GÊNERO EPISTOLAR! Nossa, acabei de perceber que o livro também são cartas. Acabei de conhecer o nome desse gênero, pela Gabriela Prioli, e, em seguida, pela Beatriz. Uma, por “The Color Purple” de Alice Walker; a outra, por “Cartas Para Minha Avó” de Djamila Ribeiro. Me lembrei esses dias que eu e a Maressa, quando crianças, nos juntávamos para ler nossos diários. O meu era da Capricho. Acho que sabia que poderia ser lido por algum adulto porque a primeira e única vez que escrevi sexo risquei risquei risquei. Eu tinha uns 7 anos.
Então, no silêncio da noite de Natal, me lembrando do presente e do prazer de um tempo sem internet, com as mantinhas, os cobertores xadrez que eu trançava as franjas até pegar no sono quando criança, comecei finalmente a ler. Com a ajuda do audiolivro que meu pai me deu nesse Natal. Escutava o livro sendo lido em alemão enquanto eu acompanhava a leitura. Um prazer. Fluido. E foi crescendo em sentido.
E, logo na primeira carta, o livro já faz absolutamente todo sentido. Você pode ler apenas a primeira carta e seguir a vida que o livro já vai ter te transformado. Entendi tudo. Dufragst mir. Segue aqui o fragmento que eu amo e quero deixar registrado “para sempre”. Em alemão, porque é belíssimo o modo como as letras se misturam em cada língua. E em português, para fazer sentido também. Do jeito que li e entendi naquele Natal.
Sie fragen, ob Ihre Verse gut sind. Você se pergunta: se seus versos “bons são”. Sie fragen mich. Você ME pergunta. Sie haben vorher andere gefragt. Você perguntou a outros antes. Sie senden sie an Zeitschriften. Você os envia a jornais. Sie vergleichen sie mit anderen Gedichten, und Sie beunruhigen sich (amo be unruhigen, pois me lembra de uma das paradas do trem que ia de Paris a Munique, Karlsruhe, “o descanso do Karl”, aí esse ruhe versão verbo pois termina em -gen, e o contrário de calmaria pois tem o un no meio... vê o meu caminho da língua?), wenn gewisse Redaktionen Ihre Versuche ablehnen. Você se reúne? com outros poetas, você se inquieta quando redações famosas recusam seus versos. Nun ....Sie sehen nach aussen, und das vor allem dürften Sie jetzt nicht tun Você procura fora, e isso antes de tudo você não deve fazer. Niemand kann Ihnen raten (rate!) und helfen (help!) niemand. Ninguém! Ninguém pode te dar notas ou te ajudar. Es gibt nur eineinziges Mittel. Só existe um jeito.Gehen Sie in sich.“Pegue-se” em você.Erforschen Sie den Grund, Sie schreiben Heist Procure a razão pela qual você precisa escrever ou procure o que você chama de escrever. Prüfen Sie, ob er in der tiefsten Stelle Ihres Hirnzens seine Wurzeln ausstreckt, gestehen Sie sich ein, ob Sie sterben musten, wennes Ihnen versagt wurde zu schreiben. (Essa parte não entendi) Dieses vor allem. Isso antes de tudo. Fragen Sie sich in der stillsten Stunde Ihrer Nacht Pergunte-se, “in the stillest hour”, ou na hora mais calma da sua noite (como aquela de Natal): muss ich schreiben? Devo eu escrever? Graben Sie in sich nach einen tiefen (lembro quando o Ingo ficou agradavelmente surpreso por eu ter descrito uma cama elástica onde estávamos todos como tief) Antwort. Fique com você até uma profunda resposta. Und wenn diese zustimmend lauten sollte, wenn Sie mit einem starken und einfachen "ich muss” dieser ernsten Fragen begegnen dürfen, E quando a essas perguntas você se sentir responder com um alto e forte “eu devo”, dannbauen Sie Ihr Leben nach dieser Notwendigkeit; Então construa sua vida a partir desse aviso, desse lembrete. Ihr Leben bis hinein in seine ... Dann nähern Sie sich der Natur. Então, “neighbor”, “se avizinhe”, aproxime-se da natureza. Dann versuche Sie, wie ein Erster Mensch, zu sagen, was Sie sehen und erleben und lieben und verlieren. Então procure, como um dos primeiros homens, dizer, o que você vê, e vive e ama…
Ok. Ich muss. Eu devo. Tem muitas coisas hoje que não sinto como se fossem úteis. Pra quê? Quantas coisas carrego, quero fazer e não faço. Às vezes, faço, mas não sei pra quê. E paro. E a coisa continua comigo. Como a leitura desse livro, que chegou no momento certo, parece. Faz sentido, depois de tanta caminhada. E todas aquelas que faltam ainda para começar. E tantas outras que sigo porque ouço o sonoro “ich muss” dentro de mim, forte, potente. E continuo. Por que eu faço o que eu faço? Por que fazer à mão quando tem máquina? Sem muito mais. Ich muss.
Perguntei para minha mãe, muito empolgada, depois de ter lido, esperando enfim saber: “Rainer Maria Rilke é seu livro preferido, né?” “Nossa, sim.” “Por quê?” “Porque sim.” Fiquei um pouco decepcionada com a falta de elaboração na resposta. Mas agora que estou escrevendo, faz sentido. Porque sim.